terça-feira, 14 de junho de 2011

Contos das Encruzilhadas - Vinho e Fogo.



E quando nos encontramos ali, mais uma vez, na volta das nossas perdidas tentativas de normalidade frustrada, nos olhamos e percebemos que somente cantar nos libertaria. O vento soprava em harmonia, prevendo que o silêncio logo se quebraria, e os acordes tornariam livres nossas pobres almas esforçadas. A piedade tomava conta das mãos congeladas que, relutantes, voltavam aos instrumentos. Regamos as vozes com vinho e fogo, e fomos consumidos naquele instante pela verdade que a música grita nos ouvidos de todos, mas que é diferente no coração de cada um. As garotas sorriram entre lágrimas que se desmanchavam no asfalto que outrora bebeu nosso sangue. Era o som de gerações que se uniam em torno da fogueira das vaidades que nos mostrava um terrível futuro, de renúncia e ressentimentos que nos fariam profetas, cujas palavras soariam sempre como nostalgia e no entanto, seriam reais e jamais esquecidas. Já não tínhamos mais a juventude. Naquela canção, envelhecemos sentindo o vento da idade soprar em nossos ouvidos as histórias que contaríamos no futuro, os homens e mulheres da encruzilhada ali, eram uma só voz, e talvez um dia não haja mais mentiras, pois o consolo das palavras não tardará a uní-los novamente. Meus dedos dedilhavam e doíam, era frio e o vinho e o fogo não mais aqueciam, não adiantavam, e eu não queria parar, pois se suportar a dor significava tocar eternamente aquela canção, isso seria feito. Os primeiros sinais de que aquilo estava chegando ao fim apareceram, e a dor nos dedos também foi esquecida, substituída por outra, mais cruel, mais vazia. Provamos nossa arte no vinho e no fogo, e nossas verdades eram piores do que queríamos. No final, nos importa somente a cicatriz daquele momento, os acordes, as palavras, e os olhares. As lágrimas foram um presente caprichoso que deixamos ali, na velha encruzilhada, que outrora bebeu o nosso sangue. Há quem diga que foi melhor assim, há quem diga que preferia nos ouvir de novo. Agora, a dignidade passa longe daquele cruzamento, que parece que está sempre à espera de alguém que ali possa derramar suas lágrimas, ou seu sangue. A isso, abriremos mais uma garrafa de vinho,  só não sabemos quando.

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